Meditações Etílicas
Meus senhores, meus senhores… Estando eu, pela manhã, descansando os olhos, de barriga para cima, na calçada, uma nobre senhora, acompanhada de seu belíssimo poodle, acordou-me proferindo enormes impropérios. A velha, pelo que constatei, sofre de uma doença crônica: derrame verborrágico. Chamou-me de pinguço e o diabo a quatro, berrando que um vagabundo como eu precisava era trabalhar. E eu permaneci impassível, como uma estátua, diante dos vitupérios, não respondi, seguindo a primeira lei do decálogo dos bêbados: Não xingar velinhas antes das onze. Ergui-me, aprumei a coluna, e depois curvei-me fazendo-lhe cumprimento e fui-me. Ora, vejam o disparate dessa mulher. Por acaso ela custeia minhas noitadas de degustações etílicas? Não. Se ela soubesse, ah se ela soubesse o mal que chama para si ao ofender alguém bêbado… É como diz o povo: deus protege os loucos, os cachorros e os bêbados. Não falo do deus cristão, não mesmo, o ditado popular alude ao deus dos mares, o abala Urbes, Poseidon. Por acaso Odisseu não vagou a ermo, por anos e anos, como castigo por ferir Polifemo, o ciclope bêbado? — Ignoro se a criatura era um bêbado, ou se foi embebedada. Tanto faz.– E que direitos têm as pessoas de me ofender? Pelo que me consta, não há, em nossa carta Magna uma só palavra que condene o ato de deliciar a velha e boa cachacinha. Esse preconceito é fruto do complexo de vira-lata, pois se ao invés de andrajos, vestisse-me com ternos Armani, cachecol, e todas as noites, com carinha de nojo afrancesada sorvesse, em taças de cristal, vinhos importados, como é que me chamariam? “Olha, ali está o Fulano de tal, sommelier de paladar refinado e nariz arrebitado. Mas, como sou rebento tupiniquim, e com honra e amor à pátria empunho, todas as noites (e dias também), o simples copo americano, barato e sofisticado, com doses puras de aguardente, alcunharam-me: Bebum. Dissolveram minhas idiossincrasias em um conceito abstrato “bebum” que me une a todos os ébrios inveterados do planeta. E digo-lhes mais: apenas uma boa cachacinha pernambucana é capaz de elevar o homem ao ponto de atingir paroxismos metafísicos! Bem, vou indo, faz calor, e a sede bate à porta.