Meditações Etílicas

Francisco Alves
2 min readOct 28, 2020
Malhoa, José. Os Bêbados. 1907. Pintura, Óleo sobre tela.

Meus senhores, meus senhores… Estando eu, pela manhã, descansando os olhos, de barriga para cima, na calçada, uma nobre senhora, acompanhada de seu belíssimo poodle, acordou-me proferindo enormes impropérios. A velha, pelo que constatei, sofre de uma doença crônica: derrame verborrágico. Chamou-me de pinguço e o diabo a quatro, berrando que um vagabundo como eu precisava era trabalhar. E eu permaneci impassível, como uma estátua, diante dos vitupérios, não respondi, seguindo a primeira lei do decálogo dos bêbados: Não xingar velinhas antes das onze. Ergui-me, aprumei a coluna, e depois curvei-me fazendo-lhe cumprimento e fui-me. Ora, vejam o disparate dessa mulher. Por acaso ela custeia minhas noitadas de degustações etílicas? Não. Se ela soubesse, ah se ela soubesse o mal que chama para si ao ofender alguém bêbado… É como diz o povo: deus protege os loucos, os cachorros e os bêbados. Não falo do deus cristão, não mesmo, o ditado popular alude ao deus dos mares, o abala Urbes, Poseidon. Por acaso Odisseu não vagou a ermo, por anos e anos, como castigo por ferir Polifemo, o ciclope bêbado? — Ignoro se a criatura era um bêbado, ou se foi embebedada. Tanto faz.– E que direitos têm as pessoas de me ofender? Pelo que me consta, não há, em nossa carta Magna uma só palavra que condene o ato de deliciar a velha e boa cachacinha. Esse preconceito é fruto do complexo de vira-lata, pois se ao invés de andrajos, vestisse-me com ternos Armani, cachecol, e todas as noites, com carinha de nojo afrancesada sorvesse, em taças de cristal, vinhos importados, como é que me chamariam? “Olha, ali está o Fulano de tal, sommelier de paladar refinado e nariz arrebitado. Mas, como sou rebento tupiniquim, e com honra e amor à pátria empunho, todas as noites (e dias também), o simples copo americano, barato e sofisticado, com doses puras de aguardente, alcunharam-me: Bebum. Dissolveram minhas idiossincrasias em um conceito abstrato “bebum” que me une a todos os ébrios inveterados do planeta. E digo-lhes mais: apenas uma boa cachacinha pernambucana é capaz de elevar o homem ao ponto de atingir paroxismos metafísicos! Bem, vou indo, faz calor, e a sede bate à porta.

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